1. Origem e definição: Oriunda da palavra ascese (do grego áskesis, eos), a ascética significa comumente a prática da ascese, ou seja, de exercício físico ou de alguma atividade, arte. Chama-se ascetismo a doutrina que se refere a toda prática ascética. Na filosofia grega é comum o relato da ascese como exercício físico, moral e intelectual para o aperfeiçoamento do homem. Os gregos a utilizavam como sinônimo de exercício e com a finalidade de alcançar alguma perfeição, não necessariamente espiritual.
2. A novidade Cristã: No Cristianismo a ‘ascética’ adquiriu um significado novo. A ascética cristã supunha igualmente a prática constante de exercício, mas não estritamente físico e intelectual, mas, sobretudo, moral, seja para a aquisição de virtudes, seja para a superação de vícios, cujo resultado era a purificação ou purgação dos vícios do corpo e da alma. Outra novidade da ascética cristã, com relação à prática ascética pagã e de outras religiões (ascese judaica, islâmica e hindu) é a de valer-se da ascese como efetivo exercício moral que não assenta o seu princípio só na busca de purificação corporal e alcance de sua perfeição natural, mas principalmente na busca de purificação espiritual e alcance de sua perfeição sobrenatural. Mas a maior novidade é o fundamento da ascética: a caridade. A caridade é o bem perfeito do espírito que excede a todos os bens.
3. A diferença da ascese cristã: Diferente da ascese pagã, a cristã não depositava só na força da natureza humana o êxito de purificação. Ela também supunha um auxílio sobrenatural: a graça. Obviamente, a graça não se desvincula, na vida do cristão, da constância na oração. Por isso, a oração, forma parte da vida ascética cristã. Assim como não seria suficiente só o esforço natural do exercício corpóreo do homem para adquirir a perfeição sobrenatural do espírito, também não bastaria só a graça dada no auxílio da perfeição sobrenatural do espírito humano, se não houvesse o devido esforço natural do exercício humano, exceto se Deus o quisesse e o permitisse, por via extraordinária. Aqui se aplica muito bem a sentença de que a graça dada ao homem supõe o seu efetivo exercício da natureza. Constitui, pois, uma falácia afirmar, sem mais, que a saúde do corpo implica na da alma. A ascética cristã visa sobremaneira à saúde da alma, que consiste nesta vida, pela fé, buscar a santidade pela constante conversão a Deus, pela purificaação da alma, culminando ainda nesta vida de iluminação e certa união com Deus, prolongada na próxima, pela posse da santidade ao vê-Lo face a face. Portanto, a ascética não é o fim, mas o meio pelo qual se chega ao fim: a santidade. E fundamentalmente nisso difere a ascética cristã da pagã grega e a das demais religiões, que também se valem ou se valeram da ascese como meio de purificação e de busca de alguma perfeição para a vida do homem.
4. A ascética na Teologia cristã: Não raro, por causa do pragmatismo inserido no ensino teológico ou mesmo o relativismo, a doutrina ascética cristã não só tem sofrido descaso, mas, pior ainda, substituída, às vezes, por doutrinas ascéticas não cristãs, quando não até trocada pelas asceses pagãs. Têm-se notícias de práticas hindus na vida de oração, como do controle da atenção pelo domínio da atenção auditiva e respiratória. Estes meios ou instrumentos físicos podem efetivamente ser úteis, desde que não adotados sob a forma e finalidade que são na ascese hindu. A ioga é exercício físico com projeção de purificação espiritual, mas a purificação almejada não se identifica com a cristã, em que Deus não é personificado ou identificado com o próprio eu do asceta hindu. O mesmo se diga de outras religiões e mesmo de prática pagãs. Mas isso não significa que tais asceses não sejam eficientes para os fins aos quais são utilizadas, mas significa que não correspondem plenamente ao fim do cristianismo, cuja ascética transcende àqueles fins, a saber, o bem do corpo, a aquisição de uma virtude para a alma, de um bem físico qualquer, pois visa a contemplação do próprio Deus, seja no outro, ainda nesta vida, pelo amor ao próximo, seja no próprio Deus, face a face, na outra vida, sem mescla ou confusão de que o meu eu se divinize ou que Deus se individualize em mim. Sabemos que de nada vale uma virtude se falta a caridade e de nada vale a robustez e a beleza de um corpo se a alma padece profundos vícios. Por isso a ascese cristã orienta-se pela caridade para o fim que é a contemplação de Deus no próximo e do próprio Deus em si. No Cristianismo, a ascética forma parte da Teologia como a doutrina que exorta, ensina, orienta à mortificação dos vícios e à aquisição e prática das virtudes. Insere-se especialmente na Teologia Moral, mas estende-se basicamente em toda doutrina teológica e é tratada especialmente em Espiritualidade em Teologia Ascética e Mística. No contexto da Teologia Moral e da doutrina da Espiritualidade cristã a ascética traduz muito bem as seguintes palavras de Cristo: “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos Céus, mas sim aquele que pratica a vontade de meu Pai que está nos céus... Assim, todo aquele que ouve essas minhas palavras e as põe em prática será comparado ao homem sensato que construiu sua casa sobre rocha” (Mt, 7, 21-24). A ascese cristã é, pois, o exercício da fé. Ora, como a fé é infinita em dons, diversos poderãos ser os exercícios ascéticos, diversos os modos, embora um mesmo é o seu conteúdo: o conteúdo da fé. Em outras palavras, uma mesma fé, mas muitos modos diversos de exercício desta mesma fé. Por isso, nem todas as espiritualidades abraçam do mesmo modo uma mesma prática ascética, embora se exija um mínimo comum para todas: a entrega de si por amor ao próximo e primeiramente a Deus – a caridade, que é sempre livre e benfazeja.
5. Nas Sagradas Escrituras: A ascese é exortada no AT, onde após a queda do primeiro homem, todos os homens são chamados pelo esforço de superação da dor, da miséria humana a purificar-se pela virtude, indo ao encontro do sofrimento, descobrindo-o em seu valor sobrenatural, revelador do caminho, como se relata, por exemplo, no livro de Jó. No NT, a ascese de São João Batista é pedagógica para inserir-nos no mistério ascético de Cristo, que não dispensa a ascese, a disciplina e a cruz, coroa ascética, para quem o deseja seguir (Mt 16, 24). É o que bem sintetiza São Paulo com a luta espiritual, pela disciplina – ascese – do corpo. Mas o Apóstolo ressalva: ‘revesti-vos da armadura de Deus’ (Ef 10,12) o que bem clarifica a necessidade da graça. Uma nota também fundamental e complementar à caridade – que torna a ascese cristã substancialmente diferente das não cristãs – é a liberdade em assumir este exercício de purificação do corpo e do espírito por amor a Cristo, cujo mistério pascal é modelo ascético do cristão. Em síntese, essa participação voluntária, livre e por amor de buscar constantemente superar os vícios, no modelo da morte salvífica de Cristo, que é o fundamento do sacramento do Batismo e a causa motora da ascese cristã, que deve ser aceita como um exercício contínuo de morrer em Cristo (1 Cor 15,31). Na Patrística, os Padres apostólicos comparam com certa freqüência a figura do cristão com a do atleta, como em Clemente Romano em sua obra Ad Cor. 5. 1 e, inclusive, Inácio de Antioquia em sua célebre Ad Pol. 1,3; 2,3; 3,1. Este ascetismo culmina com a proposta de disciplina monástica em que a mortificação, a penitência, o jejum, a abstinência e até mesmo o martírio modelam o ascetismo. Contudo a teoria da penitência – a ascética enquanto ensinamento – é sempre menos importante do que o ato da penitência – a ascese enquanto prática – de tal modo, que a ascese é mais importante para a vida do cristão do que só o conhecimento da doutrina ascética, exceto se esta complementa e enriquece àquela. Em todo caso, em matéria de vida cristã, para quem busca a perfeição, nunca é de mais saber para por em prática, embora haja uma fronteira entre a teoria e a prática, no que tange às questões morais, dadas as circunstâncias que envolvem o ato humano individual, pois o ato de justiça, embora possua a mesma forma, nunca é a mesma matéria, já que a justiça de João é semelhante à justiça praticada por Pedro só quanto à forma, mas nunca quanto às mesmas circunstâncias individuais. O Magistério da Igreja sintetiza todo o legado cristão ao afirmar que a ascese vincula-se à fidelidade da promessa do Batismo (CIC n. 2340), referindo-se ao domínio da vontade (CIC n. 1734) e ao progresso da vida espiritual (CIC n. 2015).
6. Ascética em Santo Tomás de Aquino: Apesar de todo movimento cristão com base na mortificação que vastamente foi desenvolvido na Escolástica, muito seguramente ninguém tratou mais da ascética do que Santo Tomás de Aquino. Não obstante, é curioso notar que ele não se valha desta palavra, em seu Corpus, nem desenvolveu um tratado sistemático exclusivamente com este título, embora tenha tratado vastamente deste tema sob outros nomes. Para se ter uma exata idéia, a palavra askesis ocorre apenas uma vez em toda a sua obra [Sententia Ethic., lib. 9 l. 10 n. 15.]. Vale recordar que houve também movimentos embrionários na Escolástica que preponderantemente tenderam mais para a mística, abrindo um foço de distanciamento entre a ascética e a mística.
Santo Tomás é doutor em espiritualidade, pois assim como aproximou a razão da fé, aproximou também a ascese da mística. Ambas as aproximações anteriores podem ser resumidas analogicamente com a da alma ao corpo, pois ele propôs, a partir desta aproximação, a purificação da alma pela disciplina do corpo e a perfeição do corpo pela contemplação da alma. Mesmo em seu pensamento filosófico exala o odor da doutrina espiritual, porque também aproximou a metafísica da mística. É próprio dizer, sob este aspecto, que o filósofo, na busca da perfeição espiritual por meio da filosofia, aspira pela ascese filosófica (purificação da alma pela superação dos obstáculos advindos pela aprendizagem de idéias contrárias à verdade) a uma metafísica mística (adesão e contemplação da verdade da razão que não é contrária à verdade revelada ou infusa). Se o conteúdo natural da razão não é contrário ao conteúdo sobrenatural da fé, esta aproximação é válida, porque é verdadeira, com bem nota Jacques Maritain em suas conexões entre metafísica e mística [Les Degrés du Savoir. Paris: Desclée de Brouwer, 1947, pp. 561-573].
Ora, o ápice da mística consiste na contemplação, pelo auxílio da graça infusa. Contudo, porque a graça supõe o exercício pleno da natureza humana, sobremaneira da razão, Tomás estabelece uma ordenação natural da ascética para a mística. Muito provavelmente os autores que separaram ambas as doutrinas o fizeram por tal motivo: não compreenderam a harmonia que há entre razão e fé, natureza e graça. De fato, o quietismo, que colocava exclusivamente a perfeição cristã na aspiração da prática mística, em detrimento da ascética, punha só na graça, sem o comprometimento do exercício ou da prática de virtudes, a razão da perfeição cristã. Mas isto parece contrariar a doutrina agostiniana, exímio doutor da graça, que nos ensina que a graça supõe a natureza. Neste sentido, natureza e graça, atuando em união, melhor dispõem o homem para a perfeição da vida espiritual.
Por este motivo, a ascética orienta-se, pois, naturalmente para a mística, porque nesta encontra o ponto de encontro e de união íntima com Deus, que é o que configura a vida interior e a santidade do homem. Mas não se trata de uma via estritamente sobrenatural, mas de uma vida que começa pela via natural purgativa, beneficiada sobrenaturalmente, segundo o amor e a graça divinas [STh. II-II, q. 184, a. 3] e atinge uma perfeita união com Deus.
A essência da doutrina ascética tomasiana encontra-se em seu trato de Moral, especialmente na Suma Teológica, II-II. Mas ele tratou do tema em diversas obras: Comentários aos quatro livros das Sentenças; Comentários aos Salmos; Comentários aos Livros de Jó; Comentários ao Livro Cântico dos Cânticos; Comentários ao Evangelho de São Mateus; Comentários ao Evangelho de São João; Comentários às Cartas de São Paulo; nos opúsculos: Sobre a perfeição da vida espiritual; Exposição sobre o Credo; Comentário ao Pai Nosso; Comentário à Ave-Maria; Ofício do Santíssimo Sacramento. Sem sombras de dúvidas, é na parte sobre a Moral da Suma onde encontramos um excelente e original resumo acerca da doutrina ascética.
B. Mondin assegura que a palavra que mais se aproxima do sentido que guarda o termo ‘ascese’ no contexto tomasiano é abstinência [Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso d’Aquino. Bologna: ESD, 2000, verbete Ascética/Astinenza, pp. 72-73]. De fato, a ascese assegura-se fundamentalmente pela abstinência, pois ela mesma, enquanto tal, é uma prática ascética, fundamento de muitas outras, como o jejum, a castidade, a penitência, a mortificação e inclusive o martírio etc. Portanto, em Tomás, o sentido de abstinência cumpre satisfatoriamente o amplo sentido cristão que envolve a palavra ascese.
Nestes termos, podemos dizer, de um modo geral, que a ascese para Santo Tomás é a prática de purificação da alma, mediante a renúncia e disciplina dos prazeres do corpo, pelo domínio da vontade, correção e retidão das paixões. A mística é a docilidade da alma ao Espírito Santo, por meio da qual se obtém a contemplação que se dá mediante a infusão de graças e dons que revelam à alma os mistérios da fé, estabelecendo-lhe por uma via unitiva, sua união com Deus, a partir da qual se lhe advêm, não necessariamente, outras graças extraordinárias, como as visões e revelações, que às vezes, acompanham a contemplação infusa.
Contudo, deve ser advertida a possibilidade extraordinária de que, de uma só vez, o converso passe de imediato pela via purgativa do espírito, sem demora, e atinja instantaneamente a via iluminativa e unitiva. Recorde-se que este não é o caminho ordinário, em que se vai do menos ao mais, mas de uma via extraordinária, como no caso da conversão de Paulo de Tarso, que pelo mistério da ressurreição de Cristo, pôde adquirir de imediato não só a conversão, mas também dons e graças que o colocaram mais rapidamente na via iluminativa e unitiva, sem que com isso, ele não praticasse a ascese e exortasse a necessidade e importância da mesma para todos quantos quisessem seguir a Cristo. O êxtase do espírito – característica comum da vivência da via unitiva pelos místicos – não exclui, na condição de caminhantes nesta vida, a contínua ascese, pelo contrário a corrobora ainda mais, como aprendemos da vida dos santos.
Ora, como o papel das virtudes no contexto tomasiano cumpre exatamente a purificação dos prazeres pela disciplina na aquisição e prática das virtudes, esta função coincide, ela mesma, com a prática ascética. As quatro virtudes cardeais são a base da prática ascética natural. A virtude da temperança ocupa especial lugar para a prática da ascese, pois a abstinência, o jejum e outras virtudes são justamente virtudes anexas à temperança.
Entender a ascese muito relacionada com a virtude da temperança não foge à regra grega original, em que se estabelecia como exercício, prática habitual, a virtude, como meio de aperfeiçoamento e de purificação da alma. Há, no entanto, uma diferença: para Tomás este habitual exercício se desenvolve mais plenamente a partir do auxílio sobrenatural da graça, algo desconhecido para os representantes da filosofia grega. Para os filósofos gregos a virtude natural – resultado do esforço meramente humano – é suficiente para levar o homem à perfeição e purificação da alma. Em síntese, segundo o Aquinate requer-se certo auxílio sobrenatural – as virtudes teologais e os dons do Espírito Santo – para alcançar a purificação sobrenatural da alma, pois só pela prática natural não se alcançaria nem mesma a adequadamente purificação natural, pois a graça, bem para a alma, é necessariamente, bem para o corpo, mas o que resulta num bem para o corpo, não o é necessariamente para a alma.
O itinerário da alma para Deus, segundo Santo Tomás de Aquino, se desenvolve em duas etapas: a via ascética ou purgativa que se dá pela purificação da alma e a via mística, que se dá pela via iluminativa e pela via unitiva ou da união da alma com Deus pela infusão de dons e graças na alma. É na união da alma com Deus onde se dá a contemplação pela infusão dos dons. A contemplação consiste, mediante estes dons, obter a visão de Deus, contemplá-lO.
Os mestres em espiritualidade tomistas, em especial Reginaldo Garrigou-Lagrange [Les Trois âges de la vie intérieure, prélude de celle du Ciel. Paris: Cerf, 1938], estão de acordo que são estas três vias que conduzem a alma para Deus: via purgativa (iniciantes), via iluminativa (perseverantes que progridem) e via unitiva (perfeitos que contemplam, pela infusão dos dons do Espírito Santo, a perfeição divina). A Teologia Ascética trata estritamente da via purgativa. Santo Tomás de Aquino refere-se explicitamente ao que a tradição denominou ascética, quando fala da perfeição da caridade nesta vida, à qual se chega pelo crescimento espiritual, como quando um homem se abstém até das coisas lícitas para entregar-se mais livremente ao serviço de Deus [STh. II-II, q. 184, a. 3, ad. 3]. Ora, como se trata de um crescimento espiritual convém que seja tratado, primeiramente, do alimento que promove este crescimento ou das fontes que o promovem e, depois, da disposição do espírito a este alimento, adesão e obstáculos.
6.1. As fontes de purificação e a disposição da alma: a) O acesso à vida interior: O Aquinate nos ensina que o homem tem, desde o nascimento, uma certa perfeição natural, própria de sua espécie e uma outra que lhe advém pelo crescimento, própria do indivíduo [STh. II-II, q. 184, a. 3, ad. 3]. Uma é a perfeição natural da alma, a racionalidade, e a outra é advinda pelo crescimento individual do corpo, sua individualidade. Juntas, ambas as perfeições, se complementam para constituírem uma única natureza, neste indivíduo, de tal maneira que a sua natureza não é só nem a perfeição da alma nem a do corpo, mas a união substancial de ambas as perfeições na união de alma e corpo que constitui uma substância individual de natureza racional: pessoa. Isto significa que aquilo que se acrescenta à natureza, mesmo a modo de acidente, como altura, peso, cor etc., acrescentam-se como algo positivo à perfeição da própria natureza, como todas aquelas notas individuais de cada indivíduo, constituem, de algum modo, alguma perfeição para a natureza. Neste aspecto, há a perfeição essencial e a acidental da natureza. A diferença é que a essencial é inata, no sentido de criada com a natureza, e a acidental acrescida à natureza, no sentido de que se lhe advém. Haveria a hipótese de existir alguma perfeição que não viesse do interior da natureza mas pudesse aperfeiçoá-la essencialmente? Não é contrário à perfeição inata de uma natureza possa ser beneficiada em sua própria perfeição por uma que lhe fosse dada desde fora. Portanto, é possível que uma perfeição aperfeiçoa uma outra natural, como quando à perfeição da nutrição de uma planta pela fotossíntese, lhe seja essencial a água para que ela se dê plenamente enquanto tal.
b) A necessidade de perfeição acrescida à natureza: Com relação ao ser humano difere quanto a natureza da perfeição acrescida, pois em primeiro lugar, não se trata de uma perfeição material nem acidental.. Neste sentido, seria uma perfeição espiritual e que tivesse força essencial sobre a própria natureza. Sendo assim, esta perfeição só poderia ter sua origem desde o próprio criador da natureza espiritual do homem, pois o homem não poderia dar a si mesmo algo de que carecesse e que lhe aperfeiçoasse mais. Isto dado ao homem foi denominado de dom e graça: dom, porque foi dado e graça, porque foi dado sem nada exigir em contrapartida. Corrobora para a necessidade de que a perfeição humana possa ser beneficiada externamente o fato de que na pessoa humana, nenhuma perfeição se dá acabada desde o seu início, senão que se dá gradativamente, como se percebe no desenvolvimento do embrião, da concepção ao nascimento e do nascimento ao envelhecimento. Ora, a natureza humana, embora possua sua perfeição específica – a razão – ela não é uma perfeição dada total e plenamente acabada de imediato, trata-se de uma perfeição perfectível. Uma perfeição perfectível é a que pode crescer e desenvolver. Mas tal perfeição na pessoa humana, pela via normal, está condicionada a realizar-se enquanto a alma esteja unida ao corpo, porque a perfeição da alma, nesta vida, depende para manifestar-se e desenvolver-se de que a alma esteja unida ao seu corpo, onde, possa gradativamente, atingir certo grau de perfeição superior. Ora, a perfeição própria da alma, que é de natureza espiritual, é alcançar a perfeição da vida espiritual, porque sua vida é espiritual. Mas alcançá-la não quando estivesse separada do corpo, mas já agora enquanto ainda esteja a ele unida. Por isso, Tomás nos ensina que a alma é mais perfeita quando unida ao corpo do que quando se separa dele, porque ela foi criada para existir unida ao corpo. Isso fundamenta a promessa da ressurreição no fim dos tempos. Ademais, a alma espiritual, porque não é um puro espírito, como os anjos, só aperfeiçoa a sua perfeição, na ordem natural, quando está unida ao corpo e nele e com ele pode conseguir alguma perfeição superior, segundo esta mesma ordem natural, já que toda perfeição advinda depois da separação, lhe é necessariamente dada só de modo sobrenatural e extraordinário. Ora, se a alma humana é de natureza espiritual, ela, por ter sido criada para unir-se ao seu corpo, guarda na criação de sua natureza espiritual alguma perfeição semelhante à do Criador e inclinação ao próprio Criador. Por isso se diz que ela foi criada à imagem e semelhança de Deus, porque em sua natureza encontram-se similitudes às perfeições da natureza divina. Isto faz com que, de alguma maneira, a alma encontre a fonte de toda a sua perfeição, na natureza divina que a criou. Do mesmo modo, isto faz também que a alma humana esteja, sob qualquer aspecto, relacionada com o Criador. É claro que se esta alma busca unir-se a Deus, porque se sente ordenada a Ele, e porque por natureza participa de alguma perfeição de Sua natureza, ela se orienta naturalmente em Sua direção. Esta orientação natural encontra-se inscrita em toda e qualquer alma humana, mas ela não é suficiente para que a alma por si mesma chegue à contemplação do Criador. Isso se deve à desordem da concupiscência, cuja culpa original apagada pelo Batismo não exime a natureza de padecer as penas, as conseqüências da culpa originária. Mesmo depois do Batismo, o homem precisa permanecer constantemente com este auxílio divino, ampliado sobremaneira com o mistério da encarnação, paixão e ressurreição de Cristo. Por isso, a perfeição própria do homem é a aquela adquirida pela alma e que a encontra só em Deus. A perfeição da alma é a do corpo, porque é ela que dá a vida ao corpo. Ora, a vida que ela possui é dom dado gratuitamente por Deus no ato de sua criação. Neste sentido, o que ela tem, ela o recebeu de Deus e o que recebeu é o que ela informa ao corpo. Se for rejeitado certo bem, se escolhe afastar-se de quem lhe deu. É certo, portanto, que quem se afasta de Deus, rejeita os seus bens. Ora, a vida é um bem que Deus deu gratuitamente ao homem. Não aperfeiçoá-la segundo outros dons, na constante aproximação de Deus, significa rejeitá-la. O dom da vida que a alma espiritual tem em si, o tem porque o recebeu gratuitamente de Deus. Este dom é o que primeiramente torna a alma humana semelhante a Deus. Por isso, cultiva-la em sua similitude à Deus é propriamente unir-se a Deus, assemelhar-se a Deus, segundo a perfeição natural de seu ser. Nesta busca incessante de assemelhar-se a Deus consiste a perfeição da vida espiritual cristã. E como isso não se dá senão gradativamente, exceto desígnio de Deus para alguém, toda alma humana nesta vida anseia por este crescimento espiritual. Deve espantar-nos quantos homens desconhecem este caminho, por estarem ainda presos às condições decorrentes da concupiscência que lhe privam do crescimento espiritual. O começo desta retomada da orientação dá-se pela conversão, que dá acesso ao início da vida interior.
c) Conclusão: Portanto, se desejamos conhecer a perfeição da vida espiritual devemos conhecer não só que ela se dá em graus, mas também que ela necessita de auxílio extraordinário, de perfeição espiritual acrescida à natureza, que lhe aperfeiçoe no que lhe é próprio e lhe disponha mais adequadamente para o seu fim; por isso, de algo que lhe oriente substancialmente para o seu fim. Há uma via ordinária, natural, que é condicional, mas insuficiente e uma que se lhe acresce, extraordinária, sobrenatural, suficiente. Quanto aos graus de perfeição ordinários supõem-se aquisição e constância na prática das virtudes morais; quanto aos graus de perfeição extraordinários, acrescidos à natureza, supõem-se não só a constância da prática das virtudes morais, mas também a disposição e docilidade para aquisição das virtudes teologais e de outros dons infusos pelo Espírito Santo na natureza humana. A perfeição da vida espiritual da pessoa humana, ainda nesta vida, depende de ambos os graus de perfeição. E dado que a perfeição da alma é a do próprio corpo, se a perfeição da alma é espiritual, esta também deverá ser a do próprio corpo. Neste sentido, a perfeição do corpo deve ser a de alcançar a perfeição da própria alma e não o contrário. Ora a perfeição da própria alma é, na vida atual, primeiramente conhecer a fonte de todos os dons que não só lhe aperfeiçoem, mas também que lhe purifiquem de tudo quanto lhe possa ter privado não só de sua perfeição própria, mas também das que não pôde receber e gozar em razão desta condição e secundariamente, a disposição da alma espiritual para estes dons, seja quanto ao conhecimento delas, quanto à vontade de recebê-las e a condição de colocá-las em prática. Para os que se iniciam nesta jornada, normalmente o que ocorre quando da conversão, isto é apenas o começo do acesso à vida interior, ou seja, o início de uma conversa íntima e franca com Deus.
6.1.1. As fontes espirituais: Como vimos acima, com relação à consecução da perfeição espiritual nesta vida, há graus. Ninguém nasce perfeito, quanto à vida espiritual. Por isso é importante saber a real e natural disposição da alma para esta perfeição espiritual nesta vida, já que a ascética é justamente o caminho de purificação da alma nesta vida, mediante a disciplina do corpo pela prática de virtudes. Ora, sabemos que sem o auxílio divino, mesmo a alma mais virtuosa, ela não alcançaria só, pelo único esforço ordinário e natural humano, o grau de perfeição espiritual. Por isso, é primeiramente necessário saber quais são as fontes extraordinárias e sobrenaturais que auxiliem a alma nesta via de purificação. Contudo, porque tais fontes podem ser interiores e exteriores, cabe primeiramente considerar umas e outras para melhor discernir o modo como melhor dispor a alma para usufruí-las.
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P.S.: Agradecemos o Instituto e a Revista Aquinate pela permissão de postagem de seus artigos e matérias (www.aquinate.net) em nosso site.